
O Brasil convive com filas extensas na atenção especializada — segundo estimativas, cerca de um milhão de brasileiros aguardam por procedimentos especializados. Esse quadro se agrava pela baixa qualidade dos cadastros, marcados por duplicidades, erros, ausência de classificação de risco e encaminhamentos que nem sempre observam critérios clínicos bem definidos. Assim, parte dos pacientes pode estar inscrita para procedimentos cuja real necessidade carece de melhor avaliação, revelando falhas importantes na regulação e na ausência de auditoria sistemática.
Esse cenário torna-se ainda mais paradoxal quando observamos a expressiva infraestrutura hospitalar do país: cerca de 7 mil hospitais, 500 mil leitos e aproximadamente 50 mil leitos de terapia intensiva. Trata-se de uma capacidade instalada que permitiria ao Brasil ofertar muito mais do que entrega hoje. O problema não está na falta de estrutura, mas na ausência de coordenação, na baixa integração das redes, na fragilidade da regulação e na manutenção de modelos de remuneração incompatíveis com a complexidade da atenção especializada.
Mesmo assim, o governo insiste em vender a criação de um “hospital inteligente” como solução estrutural para o SUS, como se os demais hospitais fossem incapazes de incorporar tecnologias de inteligência artificial já amplamente disponíveis. É uma narrativa simplista, alimentada por propaganda institucional e por viagens à China de caráter duvidoso, custeadas com recursos públicos, sem resultados concretos para a rede hospitalar.
Nesse contexto surgiu o programa “Agora Tem Mais Especialistas”, anunciado como resposta rápida às filas. Mas o programa foi lançado sem desenho técnico consistente: não tem escala, governança clara, integração com a regulação nem indicadores confiáveis. É política pública invertida: primeiro a propaganda, depois o improviso.
Entre suas ações, propôs-se a renegociação de dívidas tributárias de hospitais — muitos filantrópicos — em troca de prestação de serviços ao SUS. A medida traz alívio momentâneo, mas não enfrenta as causas do endividamento, como tabela defasada, subfinanciamento, modelos remuneratórios inadequados e gestões ineficientes. Além disso, premia quem se endividou e ignora instituições que administram seus recursos com responsabilidade.
Outra iniciativa celebrada foi a inclusão de mais um hospital no PROADI-SUS, como se isso fosse ampliar significativamente o acesso a procedimentos oncológicos. O PROADI é relevante para projetos estratégicos, mas não corrige déficits assistenciais estruturais, tampouco resolve o atraso diagnóstico ou a desigualdade regional na oncologia. Gera impacto midiático, não impacto real.
A proposta mais controversa envolve as operadoras de planos de saúde. O governo sugeriu que hospitais dessas empresas poderiam compensar suas dívidas no Ressarcimento ao SUS — que somam aproximadamente R$ 2,8 bilhões — mediante oferta de serviços ao sistema público. Mas há um problema elementar: se essas operadoras já demonstram dificuldade em garantir assistência adequada aos próprios beneficiários, como acreditar que conseguirão reduzir a fila do SUS? Trata-se de um arranjo juridicamente complexo, economicamente frágil e assistencialmente improvável. Não por acaso, a prática confirmou a teoria: apenas uma operadora aderiu, e os resultados foram pífios, incapazes de produzir qualquer impacto relevante na atenção especializada.
O programa também ignorou o principal problema estrutural: o modelo de remuneração. Reajustar a Tabela SUS — medida prevista em lei, mas condicionada à disponibilidade orçamentária — produziu impacto mínimo. Reajustes apenas preservam o ultrapassado fee-for-service, modelo já abandonado por sistemas universais modernos por estimular quantidade, não qualidade. A agenda correta é migrar para modelos de Value-Based Health Care (VBHC), que remuneram desfechos, integração e eficiência, como demonstrado pelo QualiSUS Cardio — iniciativa inovadora que o governo Lula, inexplicavelmente, preferiu descontinuar. Ao abdicar desse caminho, perde-se a oportunidade de alinhar incentivos, reduzir desperdícios e elevar a resolutividade. Ignorar essa modernização significa manter o SUS preso a um modelo ultrapassado, caro e ineficiente.
O maior risco do “Agora Tem Mais Especialistas” não é sua baixa efetividade, mas a tentativa de transformar a saúde pública em slogan de governo. O SUS não precisa de anúncios vistosos nem de soluções improvisadas — precisa de gestão, planejamento, modernização e responsabilidade. Sem isso, a fila continuará onde sempre esteve: na porta do cidadão brasileiro, e não nos palanques oficiais.
