
Subordinada ao Ministério da Justiça assume regulação das big techs e plataformas digitais, esvaziando papel da Anatel
O governo Lula (PT) esvaziou a atuação da Anatel na regulamentação do ECA Digital e abriu uma disputa sobre quem vai fiscalizar as big techs e o uso de inteligência artificial (IA) no país.
O ECA Digital é uma atualização do Estatuto da Criança e do Adolescente voltada ao ambiente online. A nova lei, sancionada pelo petista em 17 de setembro, estabelece obrigações específicas para plataformas digitais — como redes sociais, jogos e aplicativos — que passam a ter o dever de prevenir e remover conteúdos envolvendo abuso, exploração, cyberbullying ou publicidade imprópria voltada a menores.
Ao sancionar o ECA Digital, que define novas responsabilidades para plataformas e jogos online, Lula vetou a participação da Anatel na aplicação da lei. Em seguida, por decreto, transferiu a função para a ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados).
Empresários e especialistas apontam que a decisão enfraquece a estrutura já consolidada da Anatel e cria insegurança no setor. “É um golpe na Anatel”, disse à Folha a empresária Vivien Suruagy, presidente da Feninfra, entidade que representa mais de 137 mil empresas de infraestrutura e serviços de telecom. “Existe o receio pueril de fazer o óbvio: dar à Anatel o papel que lhe é natural de regular esse novo mundo digital.”
Segundo Suruagy, o governo petista “escolheu o pior caminho”, ao ignorar a experiência técnica e a capilaridade da agência. “Começar tudo do zero vai gerar mais custos ao Estado. A Anatel tem servidores da mais alta qualidade e seus conselheiros conduzem com alto conhecimento técnico todos os assuntos”, afirmou.
A lei foi sancionada após denúncias sobre exploração e monetização indevida de conteúdo infantil em plataformas digitais, a “adultização”. O Congresso havia dado protagonismo à Anatel, prevendo que ela pudesse ordenar bloqueios de “empresas infratoras”.
Lula vetou o dispositivo alegando inconstitucionalidade — argumento de que a organização administrativa do Executivo é prerrogativa do presidente.
Com o veto, a ANPD, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, passou a ser a autoridade responsável por fiscalizar o ambiente digital e as big techs. A mudança amplia o poder do governo sobre a regulação de dados e conteúdo online, em um momento em que o Planalto também discute a criação de regras para IA e fake news.
O especialista em regulação digital Ricardo Campos, professor da Universidade de Frankfurt, vê retrocesso. “O Brasil está caminhando para algo que não existe precedente no mundo, de atribuir a uma agência de proteção de dados competência regulatória para regular big techs. É uma jabuticaba brasileira”, afirmou.
Segundo ele, o país se isola de padrões internacionais: “As agências reguladoras que aplicam a lei europeia são equivalentes à Anatel da Alemanha, de Portugal e assim por diante. O Brasil será o único país do mundo que não vai conseguir dialogar. A regulação de big techs é um desafio global de coordenação.”
A Anatel disse ao jornal que respeita a decisão presidencial, mas manifestou preocupação com os desafios operacionais da ANPD, criada há apenas cinco anos. “Toda intermediação com o setor digital depende estruturalmente das redes de telecomunicações, seja no acesso a plataformas, na circulação de dados ou na oferta de serviços, cuja regulação é competência da Anatel”, disse a agência.
Já o Planalto afirmou à Folha que não há restrição à atuação da Anatel e que a medida provisória enviada ao Congresso transforma a ANPD em agência reguladora, criando cargos e consolidando a política de proteção de dados pessoais.
Para o governo, o modelo segue “tendência internacional”. Para o setor, é mais um passo de Lula para concentrar poder e reduzir a autonomia técnica das agências reguladoras.
